segunda-feira, 30 de abril de 2012

Ainda sobre o Acordo Ortográfico - O caso do trema


            Desde a publicação do Acordo, tenho recebido de alguns amigos saudosistas – como o Hélcio, a Simone, a Vera e a minha atual aluna Nádia de Assis – protestos pela cassação do trema. Brincadeiras à parte, sugiro que pesemos os prós e os contras, mas desde já afirmo que o posicionamento não é simples. A meu ver, o fiel da balança tende para a extinção dessa notação léxica.

            O primeiro argumento dos que defendem a permanência do trema está relacionado com a imperfeição da ortografia: linguiça e enguiça, frequente e esquente são pronunciados de maneira diferente, embora sejam escritos da mesma maneira. Isso acontece com certa frequência no português e com uma frequencia bem maior em outras línguas. Veja-se, por exemplo,  o caso da sílaba te. Em telefone e dente, as pronúncias são completamente diferentes. No primeiro caso, trata-se de uma consoante línguodental e, no segundo, de uma africada palatal (para usarmos uma classificação simples e tradicional). Há ainda inúmeros casos, que não percebemos direito, pelo fato de estarmos acostumados a eles. Por que pronunciamos de maneiras tão diferentes palavras como próximo, exame, xadrez e oxítona (respectivamente com sons de s, z, ch e cs), todas escritas com x?  E o que dizer de palavras como bênção e pertençam, que se escrevem de maneira diferente, mas se pronunciam com um ditongo nasal na última sílaba. Os exemplos são inúmeros e acho que não vale muito a pena insistir nesse assunto.

            O segundo argumento diz respeito aos alfabetizandos. Segundo alguns professores, o trema facilitaria a leitura de palavras como sequência, quinquenio, arguição e equino (em que se pronuncia o u), como também de palavras em que o u não é pronunciado: quina, aquiescência, quebranto e guirlanda. O argumento faz sentido em parte. Aqueles que dão ou deram aula no curso fundamental sabem como era difícil ensinar o uso do trema. Nos últimos anos ele era raramente usado pelos alunos e também pelos adultos. Chegou mesmo a ser dispensado nos vestibulares. Tratava-se de um caso inequívoco de morte anunciada. O uso do trema podia até ajudar um pouco no princípio, mas logo se tornava um peso morto.

            Há ainda aqueles que defendem o emprego do trema, por entender que, para o estrengeiro, o seu uso facilita a pronúncia das palavras onde ele deveria ser usado. Aqui também utilizo o argumento do parágrafo anterior. Pode até facilitar no início, mas depois ele será rapidamente esquecido. Além disso – os professores de português para estrangeiros que me perdoem – é preciso lembrar que a grafia da nossa língua tem que ser boa para os usuários da língua portuguesa e não, para os estrangeiros. Afinal, pondo de lado as questões políticas, por que houve tantas reformas na ortografia da nossa língua? Por duas razões muito simples, que, na verdade, se resumem em uma só. Para simplificar a escrita e por questões pedagógicas. A meu ver, só isso justifica plenamente a sua simplificação.  

segunda-feira, 23 de abril de 2012

Sobrou até para Guimarães Rosa


Sobrou até para Guimarães Rosa



            Eu já estava me preparando para “falar” especificamente sobre o trema, que foi cassado no último Acordo Ortográfico, quando deparei com uma reportagem – vou dizer de uma vez – estapafúrdia, que saiu hoje no Estado de Minas. Na verdade, não é a reportagem que é estapafúrdia, mas o conteúdo da proposta. Querem proibir a entrada – logo de quem? – de Guimarães Rosa, primeiramente, e também de Carlos Drummond de Andrade, de Mário de Andrade, de Manuel Bandeira, de Fernando Pessoa, de José Saramago e de muitos outros escritores nas salas de aula, porque esses autores não escrevem de acordo com a norma culta.

            Transcrevo o “caput” do artigo 1º do Projeto de Lei n. 1983/2011, de autoria do Deputado Bruno Siqueira (PMDB), que deverá ser votado na Assembleia Legislativa:

            “Fica proibida a adoção e distribuição, na rede de ensino pública e privada do Estado de Minas Gerais, de qualquer livro didático, paradidático ou literário com conteúdo contrário à norma culta da língua portuguesa ou que viole de alguma forma o ensino correto da gramática.”

            Não é a primeira vez que aparecem na mídia propostas, considerações ou comentários absurdos a respeito da língua portuguesa. A última foi a dos “ciganos”, que cheguei a comentar neste blog. Recomento às pessoas de um modo geral e, de um modo especial, aos deputados, que consultem os especialistas no assunto (professores de português), para que não cometam disparates, como este que reproduzo aqui.

            Passo ao cerne da questão, sem me ater à segunda parte da proposta do Deputado, senão fugiríamos demais ao nosso assunto.

            Em primeiro lugar, os nossos alunos, de todos níveis, precisam entrar em contato com a literatura. Afinal, as obras literárias são janelas que se abrem para o Mundo. Ler uma obra literária, ou apreciar uma obra de arte, é ultrapassar os limites desse reles mundinho em que vivemos. A língua falada do dia a dia - e a mais impura das matérias, como o lixo, por exemplo - podem forjar obras-primas de inigualável beleza.

            Além disso, arte é inovação, descoberta, ruptura. “Não se proponha a escrever, quem não se dispõe a inovar”, já dizia Ortega Y Gasset. Os grandes artistas da humanidade e, mesmo os grandes cientistas, são aqueles que duvidaram, que ousaram, que romperam com o passado: Beethoven, Monet, Galileu, Darwin, Freud, etc.

            Privar os alunos de entrar em contato com esses gênios é crime que merece cadeira elétrica.

            Em segundo lugar, compete aos professores de português mostrar aos alunos a diferença entre língua padrão e língua não padrão. A primeira está consubstanciada em jornais e revistas de grande circulação, nos livros técnicos e científicos, na linguagem burocrática e administrativa, nas leis, nos códigos, nos regulamentos, enfim, em todos os textos em que se requer um tratamento neutro à matéria apresentada. A língua não padrão  - e que também deve ser objeto de apreciação nas escolas – aparece na literatura contemporânea, nas letras de música, nas propagandas, nas peças de teatro, etc. Se o professor agir com clareza, com objetivos específicos, até mesmo com sabedoria, será perfeitamente possível separar o português padrão do português não padrão. Em meu livro Gramática: nunca mais (WMFMartins Fontes, 2007), chego a sugerir que as aulas de língua portuguesa, já no curso fundamental, sejam divididas em português padrão e prática literária. Mas isso é assunto para uma outra postagem.

            Enfim, não subestimemos os nossos alunos. Muitos deles entendem tudo de computação, de campeonato brasileiro, de Fórmula I e de MMA. E eles sabem separar com clareza a fantasia que devem usar para a balada do sábado à noite da roupinha que vestem para ver o time do coração. Isso tem tudo a ver com língua padrão e língua literária.

sexta-feira, 13 de abril de 2012

De acordo com o Acordo

            Fui alertado por minha competente e simpática ex-aluna Simone Garófalo de que há um movimento capitaneado pelos professores Pasquale Cipro Neto e Ernani Pimentel no sentido de pedir ao Senado a suspensão do Acordo Ortográfico firmado recentemente pelos países de língua portuguesa. Em que pese a minha admiração pelo Prof. Pasquale, gostaria de dizer que a suspensão do Acordo seria um retrocesso, ou mesmo um desatino, com relação a toda essa questão. Seria atear lenha a uma fogueira que já está se apagando.

            Além disso, a meu ver, o Acordo apresenta mais benefícios do que malefícios. Vejamos os benefícios.

            Retomo aqui apenas duas reformas realizadas no século passado, que foram muito positivas para a fixação da ortografia nacional: a de 1943 e a de 1971.

            Antes de 1943, a grafia das palavras era extremamente confusa. Vivia-se ainda uma época de escrita pseudoetimológica, em que havia uma forte influência da época clássica e renascentista. As palavras eram escritas à maneira latina, com o emprego de rh (como em rhomboidal), de th (como em theatro), de ph (como em phosphoro e pharmacia) e de ch (com o som de k, como em chronica e chrisma). Pode-se mesmo dizer que havia uma barafunda generalizada em termos de ortografia, com exageros e equívocos que contribuíam para uma verdadeira algaravia nacional, como nos exemplos citados, além de outros como: typographia, septe, docto, dapno, infermo, intrar, egreja, lyrio, cyrio, comptar, sancto, etc.

            Em 1904, o foneticista português Gonçalves Viana tinha escrito um livro muito importante, intitulado Ortografia Nacional, que serviu de base para as reformas que se seguiram. Mas foi só em 1943 que o Brasil fixou a atual ortografia, com a publicação do Vocabulário Ortográfico pela Academia Brasileira de Letras. É a norma de 43 que vigora até hoje e que tornou a escrita do português relativamente fácil, se a compararmos com a francesa ou inglesa, por exemplo. Em termos de ortografia, a portuguesa é uma das mais accessíveis e funcionais que existem, por causa de sua simplicidade e de sua fidelidade à fonética, embora, é claro, conserve alguns laivos de etimologismo.

            Em 1971, uma pequena e arguta reforma livrou a escrita de um fardo penoso aos usuários da língua e particularmente aos professores da língua pátria. Antes de 71, era difícil saber – e ensinar aos alunos – que agôsto, o nome do mês, levava acento para diferenciar de agosto (?), que dêle, nêle, aquêle, mêdo, estrêla, fêz, côr, fôsse, fôr e outros milhares de palavras levavam acento para diferenciar de dele, nele, aquele, medo, estrela, cor, fosse, for, etc. (todas elas com vogal tônica aberta).

            Agora imagine, meu caro leitor, como seria difícil a escrita – principalmente para o ensino de português – se não tivéssemos passado pelas reformas de 43 e 71!

            O último Acordo, de 1990, embora tenha sido tímido, pois atingiu poucas palavras da língua portuguesa (em termos de frequência), contribuiu um pouco mais para que a escrita se torne cada vez mais fácil e accessível aos usuários e aprendizes da escrita. As reformas são importantes sob o ponto de vista pedagógico, pois elas estão se encaminhando para a simplificação da ortografia. Sendo assim, considerando o recente Acordo, podem-se considerar como fatores positivos a extinção do trema e a abolição do acento em palavras como assembleia, heroico, para (verbo parar), polo, pera, coa, veem, voo, argui, etc. É claro que o Acordo tem também pontos negativos: o calcanhar de aquiles é o emprego do hífen, que continua confuso e incompreensível, como era antigamente.

            A escrita de uma língua nunca é completamente fiel à sua execução oral. Mas para o bem da simplicidade e, ipso facto, do ensino do idioma nacional, é necessário que reformas parciais sejam feitas de tempos em tempos. Caso contrário, a escrita ficará esclerosada, como no caso do inglês e do francês. Reformas muito bruscas também são desaconselháveis, porque provocam confusão entre os usuários da língua. Sugiro que a próxima reforma – que espero seja no mínimo daqui a cinquenta anos – “conserte” a questão do fonema /s/, por exemplo. Como se sabe, há pelo menos nove maneiras diferentes de escrever o “som” representado pelos dois esses da palavra osso: seda, cedo, aço, osso, descer, excêntrico, extra, exsudar e feliz. Coitados dos nossos alunos! 

            As mais importantes e difundidas línguas ocidentais têm uma escrita única no mundo, como o inglês, o francês, o espanhol e o alemão. Faltava ao português, a sexta língua mais falada na Terra, esse status de regularidade.

            Deixo aqui registradas estas sábias palavras do Prof. Ismael de Lima Coutinho a respeito do assunto em questão: “ Faz-se mister, portanto, democratizar a ortografia. Já vai longe o tempo em que ela era considerada alguma coisa misteriosa, cujos segredos só competiam aos sacerdotes e iniciados.” 

quarta-feira, 4 de abril de 2012

Por uma escola atraente e divertida

             Os conteúdos ensinados em nossas escolas são, em sua grande maioria, ultrapassados, cansativos, inúteis, ininteligíveis e perfeitamente dispensáveis. Esse é o caso da gramática. Neste blog, pretendemos discutir muito essa questão. De início, é preciso colocar nas cabeças das pessoas que as crianças só gostarão da escola se ela for “ atraente e divertida”. É o que pretendemos demonstrar neste blog. Começamos com a transcrição de um trecho da introdução do livro Gramática nunca mais 2. Voltaremos a tratar do assunto com mais profundidade.

             “O propósito desta obra está também relacionado com outro problema que aflige os educadores e os cidadãos, de um modo geral. Referimo-nos ao estado lastimável em que se encontra o nosso sistema educacional. Vamos deixar de lado os aspectos físicos e funcionais da questão (precariedade das escolas, falta de material didático, baixa remuneração dos professores, etc.) Na vida só aprendemos algo ou por interesse ou por prazer. Aqui estamos nos referindo a aprender, mas aprender de fato – do latim, aprehendere, ‘agarrar, segurar, apoderar-se, apreender’ – , o que não tem nada a ver com “decorar para ganhar uma boa nota”, como fazem muitos alunos. Ora, diversas disciplinas que são ministradas nas escolas não apresentam o menor interesse ou prazer para os alunos. Isso se dá com uma parte substancial do ensino de português, principalmente quando essa disciplina é dada com base na gramática. De fato, que prazer ou interesse (ou utilidade) há em estabelecer a distinção entre uma oração subordinada substantiva completiva nominal e uma oração subordinada substantiva objetiva indireta? Que prazer ou interesse há em estabelecer a diferença entre um pronome pessoal reto e um oblíquo? Alguns dirão que tal conhecimento contribui para o aprendizado da língua padrão. Isso nos faz lembrar o caso de uma velhinha que, mesmo não tendo passado pelos bancos escolares, dizia: “Você sabe onde está a Mariinha? Você pode procurá-la para mim?” Evidentemente que a velhinha não sabia o que é pronome reto ou oblíquo, regência verbal, verbo transitivo direto e objeto direto.”