Transcrevo, a seguir, a Introdução do livro Gramática nunca mais II - Exercícios, para que os leitores deste blog possam saber melhor de que se trata essa obra.
A
gramática nasceu com a linguagem. Mesmo antes do surgimento da linguagem
articulada, a gramática já estava implícita em outros códigos: na comunicação por
meio dos gestos, da fumaça e da representação pictórica. Sempre que houver um
sistema, uma determinada organização ou mesmo uma simples arrumação, haverá uma
“gramática” subjacente. Essa estrutura imanente muitas vezes não é explicitada.
A primeira gramática grega só surgiu no século II antes de Cristo, com Dionísio
da Trácia. A língua grega viveu, portanto, vários séculos sem uma gramática
explícita, mesmo no período áureo de sua literatura e de sua filosofia.
Apesar
disso, o seu estudo entranhou-se de tal forma nas escolas e nos meios
culturais, que as pessoas passaram a confundi-la com a própria língua. Julgam
que saber uma língua é saber a sua gramática. É muito comum uma pessoa dizer
“eu não sei português”, quando, na verdade, ela não sabe gramática.
Esse
entranhamento da gramática nas escolas e na vida das pessoas tem razões
históricas. Tome-se o caso do latim clássico. O cidadão romano usava o latim
vulgar no dia a dia, como língua oral. Em uma época em que a disponibilidade de
texto escrito era escassa, o domínio do texto erudito exigia o conhecimento da
gramática. Mesmo nos primórdios do português contemporâneo, por volta do século
XVI, o acesso ao português clássico era feito por meio da gramática.
Acrescente-se a isso o fato de que o grego e o latim tornaram-se, no decorrer
dos tempos, disciplinas obrigatórias nas escolas e o seu estudo sempre foi
feito com base na gramática.
O
aluno de hoje apresenta um perfil diferente. No mundo letrado em que vivemos,
estamos cercados de escrita por todos os lados. Apesar de haver ainda uma
distância razoável entre a língua escrita e a falada, podemos dizer que essa
distância é mínima, se a compararmos com os abismos que havia no latim clássico
e na época de Camões. Hoje, o estudo da
gramática é dispensável nas escolas por alguns motivos básicos (além de muitos
outros a que não podemos aludir nestas linhas): 1) O contato diuturno com
modelos linguísticos diferentes (televisão, internet, língua escrita, etc.)
leva o aluno a se libertar de seu acanhado idioleto e a se familiarizar com
novos padrões linguísticos; 2) Com o advento da teoria gerativa, sabe-se hoje
que todo indivíduo, inclusive o aluno que entra para a escola, possui uma
gramática internalizada, que ele domina, mas que não sabe explicitar (a explicitação
dessa gramática é tarefa dos linguistas); 3) Todo aluno que ingressa no curso
fundamental fala português, ou seja, entende o vernáculo e se expressa por meio
dele, de maneira intuitiva; a tarefa da escola consiste, basicamente, em
adaptar esse português “de casa” à chamada língua culta; 4) A gramática
tradicional, que é ensinada na escola, ficou estagnada no tempo (talvez no
mundo grego) e não acompanhou o progresso científico. Por isso mesmo é
considerada pelos linguistas como retrógrada, contraditória e ultrapassada; 5)
O cidadão comum, com raras exceções, não se interessa pelo estudo de teorias
linguísticas (como a que está nas gramáticas, por exemplo); interessa a ele
pura e simplesmente saber usar a língua adequadamente, de acordo com o que as circunstâncias
exigem.
Em
decorrência desse posicionamento, lançamos, em 2002, o livro Gramática:
nunca mais – o ensino da língua padrão sem o estudo da gramática e em 2008
surgiu a segunda edição (ROCHA, 2008a). Dedicado principalmente aos professores
e aficionados do português, nesse livro expusemos as razões que nos levaram a
acreditar que é perfeitamente possível ensinar o idioma padrão sem necessidade
de estudar gramática. Finda, porém, a leitura do livro ou terminado um curso ou
uma palestra sobre o assunto, ficava a pergunta inevitável: como
operacionalizar o conteúdo do livro, como aplicar, na prática, as propostas
apresentadas na obra? A resposta chega agora ao mercado, na forma deste
trabalho, Gramática: nunca mais II – exercícios, em que pretendemos
abranger, se não totalmente, pelo menos grande parte da prática que se requer
de um aluno do curso fundamental para chegar a um domínio satisfatório da norma
culta. Alguns itens, como a análise sintática, por exemplo, se não a
apresentamos, é porque a julgamos desnecessária no ensino de português.
A
utilização dos exercícios deste livro, torna-se desnecessário dizer, não
dispensa o aluno da prática efetiva da leitura e da interpretação de textos. Na
verdade, esse é o cerne do ensino de português. Mas é preciso considerar que a
simples exposição dos alunos aos textos, mesmo em se tratando de abordagens
mais elaboradas, não garante o efetivo domínio da língua padrão. Além disso,
sabemos que o estudo da gramática não contribui para um conhecimento efetivo da
língua. Pelo contrário, a sua presença nos bancos escolares é profundamente
perturbadora para o seu aprendizado, devido ao caráter criptográfico de sua
teoria, que acaba infligindo medo e repulsa nos alunos. Por outro lado, é
preciso dotar o ensino de português de uma prática realmente eficiente, que
leve o aluno ao domínio da língua padrão. É essa prática que pretendemos
apresentar neste livro, com exercícios dirigidos especificamente a aspectos
fundamentais da norma culta, como, por exemplo, a concordância verbal, a
colocação de pronomes, a conjugação de verbos, a regência verbal, etc. É
indispensável que o aluno domine, por exemplo, o emprego dos pronomes na norma
culta. O estudo dessa questão com base na gramática já demonstrou tratar-se de
uma tarefa de Sísifo, ou seja, totalmente ineficiente. Do mesmo modo, cremos
ser impossível estudar o emprego do acento indicador da crase ou o uso da
vírgula com base na gramática tradicional. De que adianta dizer ao aluno que
não se usa vírgula entre o núcleo de um objeto direto e seu adjunto adnominal
ou entre o núcleo de um sujeito e seu complemento nominal, se conceitos como
esses são inadequados e inacessíveis a crianças e adolescentes, ou mesmo a
adultos – como os próprios professores de português –, por apresentarem em suas
definições inconsistências teóricas assustadoras? Em suma: não basta expor os
alunos aos textos: é preciso levá-los à prática efetiva de certos gargalos da
língua padrão, como concordância verbal, regência verbal, etc., sem necessidade
de recorrer à gramática tradicional, como procuramos demonstrar neste livro.
O
propósito desta obra está também relacionado com outro problema que aflige os
educadores e os cidadãos, de um modo geral.
Referimo-nos ao estado lastimável em que se encontra o nosso sistema
educacional. Vamos deixar de lado os aspectos físicos e funcionais da questão
(precariedade das escolas, falta de material didático, baixa remuneração dos
professores, etc.) Na vida só aprendemos algo ou por interesse ou por prazer.
Aqui estamos nos referindo a aprender, mas aprender de fato – do latim, aprehendere,
‘agarrar, segurar, apoderar-se, apreender’ – , o que não tem nada a ver com
“decorar para ganhar uma boa nota”, como fazem muitos alunos. Ora, diversas
disciplinas que são ministradas nas escolas não apresentam o menor interesse ou
prazer para os alunos. Isso se dá com uma parte substancial do ensino de
português, principalmente quando essa disciplina é dada com base na gramática.
De fato, que prazer ou interesse (ou utilidade) há em estabelecer a distinção
entre uma oração subordinada substantiva completiva nominal e uma oração
subordinada substantiva objetiva indireta? Que prazer ou interesse há em
estabelecer a diferença entre um pronome pessoal reto e um oblíquo? Alguns
dirão que tal conhecimento contribui para o aprendizado da língua padrão. Isso
nos faz lembrar o caso de uma velhinha que, mesmo não tendo passado pelos
bancos escolares, dizia: “Você sabe onde está a Mariinha? Você pode procurá-la
para mim?” Evidentemente que a velhinha não sabia o que é pronome reto ou
oblíquo, regência verbal, verbo transitivo direto e objeto direto.
Este
livro pretende apresentar o estudo do português – ou melhor, a prática da
língua padrão – de uma forma atraente e provocativa, não apenas por causa dos
desafios que são apresentados no início de cada lição, mas principalmente por
causa da versão plug and play dos exercícios. Não se ensina ninguém a
montar a cavalo, a andar de bicicleta ou a dirigir um veículo com explicações
teóricas. Aprende-se a andar a cavalo, montando, a andar de bicicleta,
pedalando e a conduzir um veículo, dirigindo. Esperamos que em sala de aula a
natureza plug and play dos exercícios
leve o aluno, assim que ocupar o seu lugar, a começar, por conta própria, a
fazer os exercícios. É claro que tal procedimento behaviorista dos alunos não
prescinde da presença do professor. Sua atuação é fundamental para explicar,
orientar, esclarecer e, principalmente, para corrigir os exercícios.
Os
conteúdos ministrados em sala de aula precisam, portanto, ser atraentes e
desafiadores, para evitar um dos maiores males da educação brasileira, que é a
evasão escolar. Há dois fatores principais que eliminam os alunos da escola: a
necessidade de trabalhar e o desinteresse pelos conteúdos ensinados. Em
entrevista à revista Veja, o matemático Jacob Palis (PALIS, 2011, p. 23)
respondeu à pergunta do jornalista: “Como tornar as aulas mais atraentes e
eficazes?” A resposta foi a seguinte: “A experiência das melhores escolas, no
Brasil e no exterior, mostra que uma boa aula pressupõe desafiar os estudantes
o tempo todo, de modo que eles sejam expostos a problemas cada vez mais
complexos e estimulantes intelectualmente – o avesso da decoreba.” Para que uma
disciplina seja atraente e desafiadora, ela precisa ser lógica, compreensiva e
racional. Não é o que se dá com a gramática. Foi por isso que escolhemos como
epígrafe deste livro a frase de Charles Darwin (DARWIN, 2000, p. 49): “Nunca me
ocorrera o quanto era ilógico eu dizer que acreditava no que não conseguia
compreender e que, na verdade, era ininteligível”.
Este
livro se destina aos professores de português, aos alunos de um modo geral e às
pessoas que acreditam ser possível dominar a língua padrão escrita sem se
perder nos meandros desvanecidos de uma gramaticologia obsoleta e ineficaz. As
páginas desta obra vão demonstrar que qualquer tipo de gramática – normativa,
descritiva, textual, científica e quejandas – é dispensável no ensino de
português. Os exercícios aqui apresentados – às vezes por demais extensos, às
vezes um tanto concisos ou até mesmo com algumas imperfeições – poderão servir
de inspiração para centenas ou até milhares de exercícios alforriados do jugo
gramatical. O fulcro principal deste trabalho está comprometido com a língua
padrão, porque acreditamos, com Possenti, que “o objetivo da escola é ensinar o
português padrão” (POSSENTI, 1997, p. 17). A escola não deve, contudo,
negligenciar outras manifestações da linguagem em que não se usa a língua
padrão, como a literatura, as letras de música, a publicidade, etc., mas isso é
outra história, que foi amplamente discutida em Gramática: nunca mais (ROCHA,
2008a).
A
língua padrão, escrita ou falada, apresenta certos empregos difíceis de ser (ou
serem?) sistematizados, como é o caso – como estamos vendo – do emprego do
infinitivo. Trata-se de questões contraditórias entre os próprios gramáticos. O
leitor pode concluir como é árduo lidar com tais questões (e. g. colocação de
pronomes, emprego de locuções verbais, uso de pronomes) no nível de um curso
fundamental. Neste livro, não nos preocupamos em
expor a teoria, mas levamos os alunos a praticar tais usos. Devemos lembrar que
a gramática da língua padrão escrita é convencional e, muitas vezes, ilógica, o
que impede ao estudioso do idioma explicitar a sua organicidade. Cremos, porém,
que com o mecanismo plug and play dos exercícios, com os modelos
apresentados, com o apêndice disponível no fim da obra e com ajuda eficaz do
professor, não será difícil resolver os exercícios propostos.
Para
finalizar, é preciso dizer que o ensino de português é algo muito mais simples
do que imaginam certos teóricos da linguagem. Em seu blog, a jornalista Rosely
Sayão cita o escritor Ruy Castro, que “faz menção a quatro atividades que ele
considera essenciais em sala de saula e que foram abandonadas. São elas:
leitura em voz alta, ditado, cópia e redação” (SAYÃO, 2008). Gostaríamos apenas
de acrescentar a essas atividades os exercícios voltados para o domínio da
língua padrão, como procuramos demonstrar neste livro. Joãozinho Trinta, o
brilhante coreógrafo, afirmou certa vez: “Pobre gosta é de luxo; quem gosta de
pobreza é o intelectual.” Parodiando o ilustre carnavalesco, poderíamos
afirmar: “O objetivo de todo cidadão é a língua culta: quem se interessa pela
linguagem popular é o linguista.”