segunda-feira, 23 de abril de 2012

Sobrou até para Guimarães Rosa


Sobrou até para Guimarães Rosa



            Eu já estava me preparando para “falar” especificamente sobre o trema, que foi cassado no último Acordo Ortográfico, quando deparei com uma reportagem – vou dizer de uma vez – estapafúrdia, que saiu hoje no Estado de Minas. Na verdade, não é a reportagem que é estapafúrdia, mas o conteúdo da proposta. Querem proibir a entrada – logo de quem? – de Guimarães Rosa, primeiramente, e também de Carlos Drummond de Andrade, de Mário de Andrade, de Manuel Bandeira, de Fernando Pessoa, de José Saramago e de muitos outros escritores nas salas de aula, porque esses autores não escrevem de acordo com a norma culta.

            Transcrevo o “caput” do artigo 1º do Projeto de Lei n. 1983/2011, de autoria do Deputado Bruno Siqueira (PMDB), que deverá ser votado na Assembleia Legislativa:

            “Fica proibida a adoção e distribuição, na rede de ensino pública e privada do Estado de Minas Gerais, de qualquer livro didático, paradidático ou literário com conteúdo contrário à norma culta da língua portuguesa ou que viole de alguma forma o ensino correto da gramática.”

            Não é a primeira vez que aparecem na mídia propostas, considerações ou comentários absurdos a respeito da língua portuguesa. A última foi a dos “ciganos”, que cheguei a comentar neste blog. Recomento às pessoas de um modo geral e, de um modo especial, aos deputados, que consultem os especialistas no assunto (professores de português), para que não cometam disparates, como este que reproduzo aqui.

            Passo ao cerne da questão, sem me ater à segunda parte da proposta do Deputado, senão fugiríamos demais ao nosso assunto.

            Em primeiro lugar, os nossos alunos, de todos níveis, precisam entrar em contato com a literatura. Afinal, as obras literárias são janelas que se abrem para o Mundo. Ler uma obra literária, ou apreciar uma obra de arte, é ultrapassar os limites desse reles mundinho em que vivemos. A língua falada do dia a dia - e a mais impura das matérias, como o lixo, por exemplo - podem forjar obras-primas de inigualável beleza.

            Além disso, arte é inovação, descoberta, ruptura. “Não se proponha a escrever, quem não se dispõe a inovar”, já dizia Ortega Y Gasset. Os grandes artistas da humanidade e, mesmo os grandes cientistas, são aqueles que duvidaram, que ousaram, que romperam com o passado: Beethoven, Monet, Galileu, Darwin, Freud, etc.

            Privar os alunos de entrar em contato com esses gênios é crime que merece cadeira elétrica.

            Em segundo lugar, compete aos professores de português mostrar aos alunos a diferença entre língua padrão e língua não padrão. A primeira está consubstanciada em jornais e revistas de grande circulação, nos livros técnicos e científicos, na linguagem burocrática e administrativa, nas leis, nos códigos, nos regulamentos, enfim, em todos os textos em que se requer um tratamento neutro à matéria apresentada. A língua não padrão  - e que também deve ser objeto de apreciação nas escolas – aparece na literatura contemporânea, nas letras de música, nas propagandas, nas peças de teatro, etc. Se o professor agir com clareza, com objetivos específicos, até mesmo com sabedoria, será perfeitamente possível separar o português padrão do português não padrão. Em meu livro Gramática: nunca mais (WMFMartins Fontes, 2007), chego a sugerir que as aulas de língua portuguesa, já no curso fundamental, sejam divididas em português padrão e prática literária. Mas isso é assunto para uma outra postagem.

            Enfim, não subestimemos os nossos alunos. Muitos deles entendem tudo de computação, de campeonato brasileiro, de Fórmula I e de MMA. E eles sabem separar com clareza a fantasia que devem usar para a balada do sábado à noite da roupinha que vestem para ver o time do coração. Isso tem tudo a ver com língua padrão e língua literária.

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