Chegou
recentemente às livrarias a Gramática pedagógica do português brasileiro,
do Prof. Marcos Bagno (Parábola, 2011). Como se trata de um volume bastante
alentado, com mais de mil páginas, torna-se difícil fazer, por ora, uma crítica
minuciosa do trabalho. Além disso, a postura do autor é, de uma maneira geral,
muito inovadora, o que torna mais difícil ainda uma avaliação justa, científica
e despreconceituosa de toda a obra.
Há,
porém, dois aspectos da gramática que já podem ser analisados, por se tratar de
posturas teóricas, relacionadas com todo o livro, e que, por um lado, sustentam
positiva- mente a obra, mas, por outro, a inviabilizam, pelos motivos que
exponho a seguir.
Em
primeiro lugar, o autor se declara contrário ao ensino da gramática na escola
básica (fundamental e média). De fato, não faz sentido que um aluno de 12-13
anos estude a diferença entre um complemento nominal e um adjunto adnominal,
entre um sujeito indeterminado e um sujeito inexistente ou entre uma oração
subordinada substantiva predicativa e uma... Bem, não preciso ir adiante nessas
considerações, que têm como objetivo a extirpação de todo esse entulho
gramatical das salas de aula e dos compêndios didáticos. São vários os
argumentos que conduzem a essa conclusão e que procurei demonstrar no meu livro
Gramática: nunca mais – o ensino da língua padrão sem o estudo da
gramática (WMFMartins Fontes, 2007). A principal razão, porém, resume-se no
seguinte: o conhecimento teórico da gramática não leva o aluno a ser
proficiente em português. Pelo contrário, o estudo da gramática afasta o aluno
dos bancos escolares e lhe tira o prazer de estudar o idioma nacional.
Quanto
a esse aspecto, Marcos Bagno pergunta, ao mesmo tempo em que afirma: “Ou será que alguém acredita que é
possível levar uma pessoa a dominar plenamente as habilidades de leitura e
escrita obrigando ela (sic) a decorar a suposta diferença entre adjunto
adnominal e complemento nominal?” (p. 22) Mais adiante, o professor
continua: “Não se deve ensinar gramática na escola, mas quem ensina na escola
deve conhecer muitíssimo bem a gramática!” (p. 29)
Até aqui,
tudo bem, concordo plenamente com a postura do autor. O grande problema dessa
obra reside, porém, no tipo de linguagem que é apresentado como modelo da
língua escrita padrão.
A gramática tradicional
apresenta duas faces, que muitas pessoas – mesmo os professores de português
calejados – não conseguem discernir. De um lado, existe nos compêndios
normativos uma teoria gramatical arcaica, ultrapassada, incoerente e
autoritária. Via de regra, essa teoria não justifica seus pontos de vista. São
dez as classes de palavras, pronto e acabou! Em vou ao cinema, o verbo é
intransitivo e não se discute, apesar de todos os argumentos ao contrário.
Leia-se, a propósito o livro do Prof. Perini Por uma nova gramática do
português. Repetindo, para ficar bem claro: essa pseudo-teoria linguistica,
como já expus longamente em meus livros e como defende também o Prof. Marcos
Bagno, é perfeitamente dispensável do ensino do português.
Outra
coisa diferente é o modelo de linguagem apresentado pelas gramáticas
tradicionais. Não estou discutindo as suas fontes, as suas abonações, enfim, o
corpus ou os corpora em que se baseiam. Isso é outro problema. O certo é que o
modelo de linguagem preconizado pelas gramáticas tradicionais é seguido, quase
que integralmente, pelos suportes ou veículos que se dispõem a usar a língua
padrão escrita. Não estou me referindo aqui à língua literária, à língua da
publicidade ou às letras de música, por exemplo, já que se trata de gêneros
textuais que não utilizam obrigatoriamente a língua padrão. Refiro-me ao
português padrão escrito, aquele que é encontrado nas reportagens dos jornais e
revistas de grande circulação, nos livros e artigos técnico-científicos, nas
publicações dos tribunais, das assembleias e dos órgãos públicos, por exemplo.
De fato, esse português padrão é bem uniforme no país inteiro. Dificilmente
podemos distinguir um livro, um artigo científico ou mesmo um jornal publicado
em Porto Alegre, Rio de Janeiro ou Recife. Há, inclusive, pesquisas sobre o
assunto. Cito aqui as teses de doutorado da Prof.ª Rosângela Borges Lima (Estudo
da norma escrita brasileira presente em textos jornalísticos e
técnico-científicos – 2003) e da Prof.ª Rosilene Alessandra Marques (O
padrão culto escrito em uso no Brasil em gêneros textuais do domínio
jornalístico – 2010), ambas defendidas na Faculdade de Letras da UFMG.
Pois bem.
É esse o tipo de linguagem que é ensinado nas escolas e que serve de modelo
para que os alunos adquiram o português padrão, aquele mesmo que vai ser
utilizado pelos futuros advogados, jornalistas, engenheiros, arquitetos,
historiadores, etc., em seus trabalhos e em sua comunicação escrita formal.
Não é
essa, porém, a postura de Marcos Bagno. Em seu livro, o professor defende a
posição de que o modelo de língua proposto no ensino de português seja o da
língua falada urbana culta. Para ele, não mais o modelo de linguagem que
é ensinado pelas gramáticas tradicionais; não mais o tipo de linguagem que é
usado nos jornais e revistas de grande circulação, nos livros técnicos e
científicos, nas publicações dos tribunais, dos órgãos públicos, etc. Numa
atitude totalmente inovadora e solitária nos meios acadêmicos brasileiros, o
autor defende a posição de que a língua falada – pasmem, senhoras e senhores, língua falada! –, usada
pelas pessoas escolarizadas no dia a dia, nos seus momentos de desconcentração,
deve ser o modelo do português padrão. É preciso considerar, porém, como todos
nós sabemos, que existem diferenças marcantes entre a língua escrita e a
falada, ou, mais especificamente, entre a língua usada em um livro de direito,
por exemplo, e a língua falada espontânea de um advogado, de um jornalista ou
de um professor de geografia. Mesmo a norma falada pelas pessoas escolarizadas
difere substancialmente da norma escrita padrão. Isso é uma unanimidade entre
os autores brasileiros e do mundo inteiro.
Diz o
autor, na p. 33 de seu livro: “ A norma-padrão tradicional acaba
perdendo espaço para a norma real, habitual, normal, pelos usos feitos
pelos falantes (grifo meu) em suas atividades linguísticas cotidianas. É
dessa norma real, habitual, normal, que vamos tratar nesse (sic) livro”.
Mais adiante, na p. 77, o professor volta a afirmar: “Por isso, se é para
ensinar alguma norma, que seja, pelo menos, a norma real, o conjunto de
variedades realmente empregadas pelos falantes (grifo meu) urbanos mais
letrados”.
Cito a seguir algumas passagens
do texto do próprio autor, extraídas da Gramática pedagógica, em
que foi seguido o modelo da norma culta falada:
“...levar uma pessoa a dominar
plenamente as habilidades de leitura e escrita obrigando ela a decorar...”
(p. 22)
“Boa parte disso tudo a gente
aprende em casa... na nossa comunidade, nos grupos que fazemos parte,
nas redes sociais que nos movimentamos...” (p. 28)
“Me
refiro aos dois títulos abaixo...” (p. 25)
“...já
passou da hora de se considerar igualmente válido e igualmente correto dizer
‘vou ao cinema’, ‘vou no cinema’ ou ‘vou para o cinema’.” (p. 620)
“Não
existe vida social sem que se estabeleça normas para a conduta...” (p.
32)
“No corpus
do NURC-Brasil, existe 28 usos de tinha como apresentacional...”
(p. 626)
Seguem-se
exemplos de citações extraídas do projeto NURC (uma ampla pesquisa, de cunho
científico, que estuda a Norma Urbana Culta falada do português do Brasil).
Segundo o autor da Gramática pedagógica, trata-se de modelos de linguagem
que devem ser seguidos pelos alunos e pelas pessoas de um modo geral, quando
forem usar a língua escrita formal em seus trabalhos escolares, relatórios,
monografias, artigos técnicos e científicos, procurações, reportagens, ofícios,
petições, sentenças judiciais, etc.:
“...prefiro
ir a teatro do que a cinema...quando o filme não é bom né?...” (p. 533)
“...meu
marido estava em São Paulo semana passada e obriguei ele a ir ao
shopping...” (p. 597)
“A
capital cresceu e com o desenvolvimento veio também os problemas da
cidade grande...” (p. 634)
“...ela
também está não sei a impressão que eu tenho pelo menos...ela também está meia...desiludida...”
(p. 675)
“Tudo
aquilo foi me deixando mais excitado ainda...Mas, ao mesmo tempo, uma dó
danada daquela menina perdida lá na Europa...” (p. 692)
“Aí pode
ser pouquinha, pouquíssima coisa, mas que dê pra mim mastigar, porque se
eu...” (p. 731)
“...televisão
e tudo quando aparece eu tenho a impressão que o trigo deve ser muito
bonito.” (p. 896)
“...tem
essa amiga também que agora o...o marido foi de muda para Passo Fundo.”
(p. 903)
“...uma
moça bem vestida me perguntou aonde ficava a rua.” (p. 929)
A
propósito: não faz sentido, em um trabalho acadêmico, a apresentação de alguns
exemplos pinçados de fontes escritas, como faz o autor. Uma pesquisa desse
tipo, que se proponha verdadeiramente científica, tem que ser exaustiva, como
fizeram as professoras citadas no início deste texto.
A
pesquisa desenvolvida pela Prof. Rosângela Borges Lima, por exemplo, que serviu
como corpus para a sua tese de doutorado, demonstrou, à exaustão, que nos
jornais e revistas de grande circulação, nos livros e artigos
técnico-científicos, nos documentos oficiais, nas leis, enfim, nos suportes ou
publicações onde se espera seja usado o português padrão escrito, de fato, o
modelo de língua usado é aquele preconizado pela gramática normativa. É o que
diz a professora na conclusão de seu trabalho: “O que observamos é, mais uma
vez, nos textos escritos em linguagem formal, um alto grau de coincidência
entre as escolhas feitas e as normas prescritas” (entenda-se: pela gramática
tradicional). (p. 304)
Para que
se tenha uma ideia da “obediência” do português escrito padrão contemporâneo às
normas da gramática tradicional, cito apenas alguns números da pesquisa
(realizada com cerca de 11.000 exemplos). Os resultados refletem essa posição,
de maneira inequívoca (cf. c. os anexos da tese):
Concordância verbal: sujeito
posposto: 99,6% (de acordo com a gramática tradicional)
Colocação de pronomes átonos em
início de oração e de período: 95,7% (idem)
Concordância
verbal – voz passiva sintética com 1 núcleo verbal: 91,6% (idem)
Emprego
de cujo: 100% (idem)
Emprego
de pronomes demonstrativos: 100% (idem)
Emprego
de pronomes pessoais: 96,5% (idem)
Emprego
de pronomes relativos preposicionados: 99,4% (idem)
O Prof.
Marcos Bagno renega, equivocadamente (como foi demonstrado), o modelo de
linguagem proposto pela gramática tradicional – que ele rotula de norma-padrão
clássica – por ser, segundo ele, “ideal, prescritiva e totalmente
desvinculada dos usos autênticos do PB (português brasileiro).” (p. 21) Há aqui
um tríplice engano: 1º) O português padrão proposto pelas gramaticas
tradicionais não é “ideal”, pois está presente na maioria esmagadora dos textos
escritos em que se espera que ele seja usado; 2º) O português padrão é
“prescritivo”, sim, com muita honra, pois serve de modelo para aqueles que
fazem uso da escrita formal. Esse é o papel das gramáticas normativas ou
prescritivas, como os próprios nomes indicam e como espera a sociedade
em que vivemos; 3º) O português padrão, descrito pelas gramáticas, é, de fato,
desvinculado dos “usos autênticos do PB”, porque não é seu objetivo descrever a
língua falada, mesmo das pessoas cultas.
Por fim,
é preciso lembrar ao Prof. Marcos Magno que não cabe a ele propor uma “nova
norma linguística para o ensino.” (p. 27) Não cabe a ele nem a ninguém – nem
aos linguistas, nem aos gramáticos, nem aos professores de português, nem aos
jornalistas, nem aos escritores, etc. Compete aos estudiosos simplesmente
observar e descrever os usos reais da língua, como ensina qualquer manual
elementar de linguistica descritiva. E a língua formal escrita do português
contemporâneo é aquela que é apresentada pelas gramáticas tradicionais, com
poucas modificações, como demonstraram as teses das professoras Rosângela
Borges Lima e Rosilene Alessandra Marques.
O meu
temor é que essa Gramática (anti)pedagógica se alastre pelo país.
Senhores jornalistas,
comunicadores, professores de português e de linguística e pessoas sensatas de
um modo geral! Não permitam que o germe do obscurantismo e da insensatez
penetre em nossas já tão combalidas escolas de ensino básico!
Querido Professor, como sempre estou acompanhando de perto o seu blog. Gosto muito de alguns pontos defendidos pelo Marcos Bagno (não todos!). Não li a "Gramática pedagógica do português brasileiro" lançada por ele. No entanto, pela sua crítica, achei extremamente audaciosa(!?). Eu, que não sou da turma dos gramáticos, nem tenho bagagem para isso, fiquei admirada com a proposição de ter como norma a língua falada. Gramática não é coisa para se ensinar a alunos do Ensino Básico, mas daí criar uma gramática fora da norma padrão é furtar conhecimento aos possíveis leitores. A não ser que eles sejam bem perspicazes para entender a diferença entre os gramáticos (o que, infelizmente, nossa educação atual não permite). Não sou contra as pessoas defenderem o que quiserem, mas daí ficar sob o nome de Gramática pode causar uma confusão e tanto. Eu fico aqui me perguntando se outras áreas fizessem esse tipo de confusão. Enfim, essa mudança de norma traz uma bagagem de críticas.
ResponderExcluirPois é, estou imaginando a mesma confusão. Vou comprar essa gramática para analisá-la.
ResponderExcluirPrezado professor, não tenho pré conceitos nem aplaudo jargões mas é bem verdade que quem sabe, sabe como ensinar e outros, preferem teorizar, o que resulta em nada. Depois dessa nova Proposta Curricular para o Estado de São Paulo, é frustrante ver que tudo que podemos ensinar não cabe dentro de apostilas pré fabricadas, onde o aluno não se situa, não desperta o curiosismo, não sequencia, não forma conceitos,ou melhor, preocupa-se em consomir respostas em blogs mal intencionados, que a SE não fiscaliza, tipo www.cadernodoaluno....
ResponderExcluirPrezado,
ResponderExcluirJornalista nunca foi estudioso da língua, logo o apelo a este é inútil. Ele segue o famigerado manual de redação, que está longe de ser uma gramática.
Parabéns pelo blog e pelo artigo.
Estava pesquisando umas coisinhas e caí aqui. Quando comecei a ler o texto pensei que se tratava de um professor mais idoso e pela foto parece ser mesmo. Digo isso pois estudar e valorizar as variantes linguísticas é coisas nova nas faculdades de Letras e graças a Deus eu sou da nova geração que não coloca a gramática em baixo dos braços e sai pregando como um crente fanático com sua Bíblia. Bagno, que ao contrário do que acredita nossa amigo Rolo, é sim doutor em Língua Portuguesa, professor e escritor cujas bibliografias mais são estudas hoje em dia nas faculdades e pedidas em concursos. Resumindo Bagno e toda a nova cultura de valorização das variantes linguísticas, podemos dizer que a língua culta é apenas umas das variantes da Língua Portuguesa e não a Língua Portuguesa. Há de se ter consciência disso ao ensinar a gramática normativa mostrando que ela é necessária, mas não é a única forma de manifestação da Língua. Que ela será sim exigida e será ensinada. Mas que as variantes são legítimas enquanto manifestação social tanto quanto a culta. É ser poliglota dentro da própria língua, como nos diz Bechara, o gramático, que apesar de ser gramático e ter um livro normativo ótimo, sabe o que fala e é mais inteligente do que todos vcs que aqui que se manifestaram e que o autor do texto acima. Por favor faça um curso de reciclagem!
ResponderExcluirConcordo com cada palavra sua, Peppa.
ExcluirSe o ensino da gramática ao longo desse tempo estivesse produzindo brasileiros plenamente alfabetizados, esta matéria nem precisaria existir. Será que isto não está óbvio?
Tá explicado porque todos os meus professores de Licenciatura em Letras- Língua e Literatura Portuguesa, são tão rasos em Gramática e pagam o maior micão, quando precisam usar recursos gramaticais. Agora me aparece o Bagno, dando sua "valorosa contribuição", para ajudar o povo a formar o "bloco do coloquial é mó legal". Deus do céu!!!!SOCORRO!!!!!!!!!!!!!!!!!!
ExcluirA resposta está aqui: "bonitinha" é flexão ou derivação? A gramática tradicional sempre se transforma, do contrário, perde o bonde da história e das variantes da língua.
ResponderExcluirOlá, Luiz. Para incluir nas leituras de um orientando da UERJ, gostaria de ter acesso ao trabalho de Rosângela Borges Lima (Estudo da norma escrita brasileira presente em textos jornalísticos e técnico-científicos, 2003), que não está disponível em PDF na internet. O da Rosilene Marques eu localizei e baixei (ótimo, por sinal). Agradeço se vc puder me ajudar. Abraço!
ResponderExcluir"Eu vou ao cinema" => o verbo não é intransitivo. O verbo, pela Gramática Tradicional, é transitivo (precisa de complemento) indireto. E na fala também. O que difere é a preposição usada; a GT pede a preposição "a", enquanto na fala se emprega "em", geralmente flexionado pelo artigo da palavra seguinte.
ResponderExcluirO grande problema em se propor que não seja mais ensinada a gramatica em sala de aula é que não se sugere nada para a substituição desse conteúdo, ou teorizam demais a ideia, de modo que a prática é quase impossível. Eu, particularmente, tenho tentado inovar minha metodologia a cada aula, mas sinto uma grande dificuldade ainda...
ResponderExcluirO grande problema em se propor que não seja mais ensinada a gramatica em sala de aula é que não se sugere nada para a substituição desse conteúdo, ou teorizam demais a ideia, de modo que a prática é quase impossível. Eu, particularmente, tenho tentado inovar minha metodologia a cada aula, mas sinto uma grande dificuldade ainda...
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