quarta-feira, 27 de fevereiro de 2013

Introdução a GRAMÁTICA NUNCA MAIS II


  Transcrevo, a seguir, a Introdução do livro Gramática nunca mais II - Exercícios, para que os leitores deste blog possam saber melhor de que se trata essa obra.         
 
           A gramática nasceu com a linguagem. Mesmo antes do surgimento da linguagem articulada, a gramática já estava implícita em outros códigos: na comunicação por meio dos gestos, da fumaça e da representação pictórica. Sempre que houver um sistema, uma determinada organização ou mesmo uma simples arrumação, haverá uma “gramática” subjacente. Essa estrutura imanente muitas vezes não é explicitada. A primeira gramática grega só surgiu no século II antes de Cristo, com Dionísio da Trácia. A língua grega viveu, portanto, vários séculos sem uma gramática explícita, mesmo no período áureo de sua literatura e de sua filosofia.

            Apesar disso, o seu estudo entranhou-se de tal forma nas escolas e nos meios culturais, que as pessoas passaram a confundi-la com a própria língua. Julgam que saber uma língua é saber a sua gramática. É muito comum uma pessoa dizer “eu não sei português”, quando, na verdade, ela não sabe gramática.

            Esse entranhamento da gramática nas escolas e na vida das pessoas tem razões históricas. Tome-se o caso do latim clássico. O cidadão romano usava o latim vulgar no dia a dia, como língua oral. Em uma época em que a disponibilidade de texto escrito era escassa, o domínio do texto erudito exigia o conhecimento da gramática. Mesmo nos primórdios do português contemporâneo, por volta do século XVI, o acesso ao português clássico era feito por meio da gramática. Acrescente-se a isso o fato de que o grego e o latim tornaram-se, no decorrer dos tempos, disciplinas obrigatórias nas escolas e o seu estudo sempre foi feito com base na gramática.

            O aluno de hoje apresenta um perfil diferente. No mundo letrado em que vivemos, estamos cercados de escrita por todos os lados. Apesar de haver ainda uma distância razoável entre a língua escrita e a falada, podemos dizer que essa distância é mínima, se a compararmos com os abismos que havia no latim clássico e na época de Camões. Hoje, o estudo da gramática é dispensável nas escolas por alguns motivos básicos (além de muitos outros a que não podemos aludir nestas linhas): 1) O contato diuturno com modelos linguísticos diferentes (televisão, internet, língua escrita, etc.) leva o aluno a se libertar de seu acanhado idioleto e a se familiarizar com novos padrões linguísticos; 2) Com o advento da teoria gerativa, sabe-se hoje que todo indivíduo, inclusive o aluno que entra para a escola, possui uma gramática internalizada, que ele domina, mas que não sabe explicitar (a explicitação dessa gramática é tarefa dos linguistas); 3) Todo aluno que ingressa no curso fundamental fala português, ou seja, entende o vernáculo e se expressa por meio dele, de maneira intuitiva; a tarefa da escola consiste, basicamente, em adaptar esse português “de casa” à chamada língua culta; 4) A gramática tradicional, que é ensinada na escola, ficou estagnada no tempo (talvez no mundo grego) e não acompanhou o progresso científico. Por isso mesmo é considerada pelos linguistas como retrógrada, contraditória e ultrapassada; 5) O cidadão comum, com raras exceções, não se interessa pelo estudo de teorias linguísticas (como a que está nas gramáticas, por exemplo); interessa a ele pura e simplesmente saber usar a língua adequadamente, de acordo com o que as circunstâncias exigem.

            Em decorrência desse posicionamento, lançamos, em 2002, o livro Gramática: nunca mais – o ensino da língua padrão sem o estudo da gramática e em 2008 surgiu a segunda edição (ROCHA, 2008a). Dedicado principalmente aos professores e aficionados do português, nesse livro expusemos as razões que nos levaram a acreditar que é perfeitamente possível ensinar o idioma padrão sem necessidade de estudar gramática. Finda, porém, a leitura do livro ou terminado um curso ou uma palestra sobre o assunto, ficava a pergunta inevitável: como operacionalizar o conteúdo do livro, como aplicar, na prática, as propostas apresentadas na obra? A resposta chega agora ao mercado, na forma deste trabalho, Gramática: nunca mais II – exercícios, em que pretendemos abranger, se não totalmente, pelo menos grande parte da prática que se requer de um aluno do curso fundamental para chegar a um domínio satisfatório da norma culta. Alguns itens, como a análise sintática, por exemplo, se não a apresentamos, é porque a julgamos desnecessária no ensino de português. 

            A utilização dos exercícios deste livro, torna-se desnecessário dizer, não dispensa o aluno da prática efetiva da leitura e da interpretação de textos. Na verdade, esse é o cerne do ensino de português. Mas é preciso considerar que a simples exposição dos alunos aos textos, mesmo em se tratando de abordagens mais elaboradas, não garante o efetivo domínio da língua padrão. Além disso, sabemos que o estudo da gramática não contribui para um conhecimento efetivo da língua. Pelo contrário, a sua presença nos bancos escolares é profundamente perturbadora para o seu aprendizado, devido ao caráter criptográfico de sua teoria, que acaba infligindo medo e repulsa nos alunos. Por outro lado, é preciso dotar o ensino de português de uma prática realmente eficiente, que leve o aluno ao domínio da língua padrão. É essa prática que pretendemos apresentar neste livro, com exercícios dirigidos especificamente a aspectos fundamentais da norma culta, como, por exemplo, a concordância verbal, a colocação de pronomes, a conjugação de verbos, a regência verbal, etc. É indispensável que o aluno domine, por exemplo, o emprego dos pronomes na norma culta. O estudo dessa questão com base na gramática já demonstrou tratar-se de uma tarefa de Sísifo, ou seja, totalmente ineficiente. Do mesmo modo, cremos ser impossível estudar o emprego do acento indicador da crase ou o uso da vírgula com base na gramática tradicional. De que adianta dizer ao aluno que não se usa vírgula entre o núcleo de um objeto direto e seu adjunto adnominal ou entre o núcleo de um sujeito e seu complemento nominal, se conceitos como esses são inadequados e inacessíveis a crianças e adolescentes, ou mesmo a adultos – como os próprios professores de português –, por apresentarem em suas definições inconsistências teóricas assustadoras? Em suma: não basta expor os alunos aos textos: é preciso levá-los à prática efetiva de certos gargalos da língua padrão, como concordância verbal, regência verbal, etc., sem necessidade de recorrer à gramática tradicional, como procuramos demonstrar neste livro.

            O propósito desta obra está também relacionado com outro problema que aflige os educadores e os cidadãos, de um modo geral. Referimo-nos ao estado lastimável em que se encontra o nosso sistema educacional. Vamos deixar de lado os aspectos físicos e funcionais da questão (precariedade das escolas, falta de material didático, baixa remuneração dos professores, etc.) Na vida só aprendemos algo ou por interesse ou por prazer. Aqui estamos nos referindo a aprender, mas aprender de fato – do latim, aprehendere, ‘agarrar, segurar, apoderar-se, apreender’ – , o que não tem nada a ver com “decorar para ganhar uma boa nota”, como fazem muitos alunos. Ora, diversas disciplinas que são ministradas nas escolas não apresentam o menor interesse ou prazer para os alunos. Isso se dá com uma parte substancial do ensino de português, principalmente quando essa disciplina é dada com base na gramática. De fato, que prazer ou interesse (ou utilidade) há em estabelecer a distinção entre uma oração subordinada substantiva completiva nominal e uma oração subordinada substantiva objetiva indireta? Que prazer ou interesse há em estabelecer a diferença entre um pronome pessoal reto e um oblíquo? Alguns dirão que tal conhecimento contribui para o aprendizado da língua padrão. Isso nos faz lembrar o caso de uma velhinha que, mesmo não tendo passado pelos bancos escolares, dizia: “Você sabe onde está a Mariinha? Você pode procurá-la para mim?” Evidentemente que a velhinha não sabia o que é pronome reto ou oblíquo, regência verbal, verbo transitivo direto e objeto direto.

            Este livro pretende apresentar o estudo do português – ou melhor, a prática da língua padrão – de uma forma atraente e provocativa, não apenas por causa dos desafios que são apresentados no início de cada lição, mas principalmente por causa da versão plug and play dos exercícios. Não se ensina ninguém a montar a cavalo, a andar de bicicleta ou a dirigir um veículo com explicações teóricas. Aprende-se a andar a cavalo, montando, a andar de bicicleta, pedalando e a conduzir um veículo, dirigindo. Esperamos que em sala de aula a natureza plug and play dos exercícios leve o aluno, assim que ocupar o seu lugar, a começar, por conta própria, a fazer os exercícios. É claro que tal procedimento behaviorista dos alunos não prescinde da presença do professor. Sua atuação é fundamental para explicar, orientar, esclarecer e, principalmente, para corrigir os exercícios.

            Os conteúdos ministrados em sala de aula precisam, portanto, ser atraentes e desafiadores, para evitar um dos maiores males da educação brasileira, que é a evasão escolar. Há dois fatores principais que eliminam os alunos da escola: a necessidade de trabalhar e o desinteresse pelos conteúdos ensinados. Em entrevista à revista Veja, o matemático Jacob Palis (PALIS, 2011, p. 23) respondeu à pergunta do jornalista: “Como tornar as aulas mais atraentes e eficazes?” A resposta foi a seguinte: “A experiência das melhores escolas, no Brasil e no exterior, mostra que uma boa aula pressupõe desafiar os estudantes o tempo todo, de modo que eles sejam expostos a problemas cada vez mais complexos e estimulantes intelectualmente – o avesso da decoreba.” Para que uma disciplina seja atraente e desafiadora, ela precisa ser lógica, compreensiva e racional. Não é o que se dá com a gramática. Foi por isso que escolhemos como epígrafe deste livro a frase de Charles Darwin (DARWIN, 2000, p. 49): “Nunca me ocorrera o quanto era ilógico eu dizer que acreditava no que não conseguia compreender e que, na verdade, era ininteligível”.

            Este livro se destina aos professores de português, aos alunos de um modo geral e às pessoas que acreditam ser possível dominar a língua padrão escrita sem se perder nos meandros desvanecidos de uma gramaticologia obsoleta e ineficaz. As páginas desta obra vão demonstrar que qualquer tipo de gramática – normativa, descritiva, textual, científica e quejandas – é dispensável no ensino de português. Os exercícios aqui apresentados – às vezes por demais extensos, às vezes um tanto concisos ou até mesmo com algumas imperfeições – poderão servir de inspiração para centenas ou até milhares de exercícios alforriados do jugo gramatical. O fulcro principal deste trabalho está comprometido com a língua padrão, porque acreditamos, com Possenti, que “o objetivo da escola é ensinar o português padrão” (POSSENTI, 1997, p. 17). A escola não deve, contudo, negligenciar outras manifestações da linguagem em que não se usa a língua padrão, como a literatura, as letras de música, a publicidade, etc., mas isso é outra história, que foi amplamente discutida em Gramática: nunca mais (ROCHA, 2008a).

            A língua padrão, escrita ou falada, apresenta certos empregos difíceis de ser (ou serem?) sistematizados, como é o caso – como estamos vendo – do emprego do infinitivo. Trata-se de questões contraditórias entre os próprios gramáticos. O leitor pode concluir como é árduo lidar com tais questões (e. g. colocação de pronomes, emprego de locuções verbais, uso de pronomes) no nível de um curso fundamental. Neste livro, não nos preocupamos em expor a teoria, mas levamos os alunos a praticar tais usos. Devemos lembrar que a gramática da língua padrão escrita é convencional e, muitas vezes, ilógica, o que impede ao estudioso do idioma explicitar a sua organicidade. Cremos, porém, que com o mecanismo plug and play dos exercícios, com os modelos apresentados, com o apêndice disponível no fim da obra e com ajuda eficaz do professor, não será difícil resolver os exercícios propostos.                 

            Para finalizar, é preciso dizer que o ensino de português é algo muito mais simples do que imaginam certos teóricos da linguagem. Em seu blog, a jornalista Rosely Sayão cita o escritor Ruy Castro, que “faz menção a quatro atividades que ele considera essenciais em sala de saula e que foram abandonadas. São elas: leitura em voz alta, ditado, cópia e redação” (SAYÃO, 2008). Gostaríamos apenas de acrescentar a essas atividades os exercícios voltados para o domínio da língua padrão, como procuramos demonstrar neste livro. Joãozinho Trinta, o brilhante coreógrafo, afirmou certa vez: “Pobre gosta é de luxo; quem gosta de pobreza é o intelectual.” Parodiando o ilustre carnavalesco, poderíamos afirmar: “O objetivo de todo cidadão é a língua culta: quem se interessa pela linguagem popular é o linguista.”

 

Um comentário:

  1. Olá Prof. Estou querendo fazer uso do livro para aprimorar meus conhecimentos e quem sabe um dia dominar a norma culta. Sou advogada, professora universitária, e me deparei com uma dificuldade tremenda quando fui fazer minha dissertação de mestrado. Comprei este livro e gostaria de saber se existe algum gabarito, pois estou querendo fazer os exercícios e não tenho as respostas corretas para verificar meus erros.

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